No filme, Alexandria é retratada como uma grande cidade, cuja população se divide entre a elite romana, não cristã, ou seja, considerada pagã, a plebe e os escravos, em sua maioria cristãos.
Num primeiro momento verificamos embates entre pagãos e cristãos que, apesar de descambarem para a violência, podem ser considerados espontâneos, cujo ápice é a tentativa dos pagãos de subjugarem os cristãos, mas sofrem um grande revés, dado ao imenso número desses últimos, que apoiados pelo imperador romano saem vitoriosos e se apossam da biblioteca destruindo seu acervo. Em decorrência, parte da elite se converte ao cristianismo e se mantém na administração da cidade.
Num segundo momento, a intolerância religiosa se acirra. Agora entre os cristãos e os judeus, atingindo o ápice com o massacre dos parabolanos (membros de uma seita cristã) e que marca o início da manipulação religiosa por parte da Bispo Cirilo que condena os judeus ao exílio, que é levado a efeito por meio da violência extrema. A partir daí, Cirilo vê na investida contra a Filósofa Hipátia a melhor forma de afastar Orestes, Prefeito e portanto autoridade maior de Alexandria, e se apoderar do poder temporal naquele lugar, uma vez que já detém o poder espiritual.
Embora filósofa, as investigações de Hipátia ao longo do filme são científicas, pois o que a atormenta não são problemas existenciais, mas sim a necessidade de entender os movimentos dos corpos celestes, denominados errantes. É marcante ao longo do filme sua citação do primeiro axioma de Euclides: “se duas coisas são iguais a uma terceira coisa, então elas são todas iguais entre si”, citação utilizada para apaziguar uma contenda entre dois de seus alunos, Orestes e Genésio, que mais tarde tentaram utilizá-lo para demovê-la da sua indiferença quanto ao assédio moral de Cirilo. Nesse contexto, o que deveria ser levado em consideração é o fato de sermos todos seres humanos, independentemente das nossas convicções políticas e/ou religiosas.
Também é marcante no filme a concepção de que o círculo é a forma geométrica perfeita e, portanto, seria a unica trajetória dos errantes compatível com a perfeição do universo. Essa concepção herdada dos antigos filósofos, que sabemos equivocada, é o grande obstáculo entre Hipátia e a solução para o seu dilema científico ao longo de todo o filme. Hipátia também deixa claro que não consegue conceber sua própria existência sem um centro de referência. Isso parece ser comum ao ser humano que se coloca no mundo sempre em relação a um centro, que em realidade deveria ser ele próprio, porém, é comum dizermos que moramos longe e não que trabalhamos longe, estudamos longe etc.
Outro personagem central na trama de Alexandria é Davos, um dos escravos de Hipátia, apaixonado por ela, que se rebela durante a tomada da biblioteca pelos cristãos e passa a fazer parte dos parabolanos.
Se formos contextualizar a saga desses personagens em relação ao mito da caverna, em que homens se limitam a visualizar o mundo apenas por meio das sombras projetadas na parede da caverna de onde nunca saíram, temos que levar em consideração que naquele contexto histórico se posicionar diante da sociedade a partir de uma leitura do mundo para além da parede da caverna era extremamente arriscado, o que selou os destinos de Hipátia e Orestes. Hipátia concebia um mundo indiferente aos dogmas religiosos e Orestes acreditava na convivência pacífica entre diferentes correntes ideológicas, porém Cirilo, que tinha uma ampla visão para além da caverna, precisava submetê-los e/ou eliminá-los para alcançar seus objetivos. Hipátia não concebia viver submissa e longe de suas especulações científicas e filosóficas. Orestes, apesar de ter se adaptado inicialmente a supremacia cristã não concebia um mundo regido por dogmas religiosos, porém não se sentia capaz de se opor a Cirilo sem Hipátia. Davos também não encontrou seu lugar na nova ordem, pois as práticas dos parabolanos eram conflitantes com o discurso cristão. Esses três personagens conseguiam enxergar além da caverna, porém o contexto histórico em que se encontravam não lhes permitiria se opor a manipulação de Cirilo sobre aqueles que viviam mergulhados na caverna e mostravam-se sempre prontos a reagir com grande fúria contra qualquer um que se oposusse a ele.
Em relação à música Philosopher (Filósofo), Yellowstone and Voice, temos que seus questionamentos se aplicam a Hipátia: “Você sabe para onde você vai?; Você pode sobreviver ao mundo que você ensina?; E podemos viver o mundo que você prega?” A resposta para essas questões é NÃO: a filosofia não é uma ciência exata e, no contexto histórico do filme, declarar publicamente uma concepção de sociedade diferente daquela baseada na visão de mundo hegemônica era fatal. Por outro lado, temos que, a necessidade de seguir um líder é bastante marcante na humanidade e desse modo, as ideias desse líder representado na canção pelo filósofo, sobrevivem a ele e, por vezes, conseguem se sobrepor a ideias hegemônicas.
Alguns versos da música The Scientist (O Cientista), Coldplay, nos remetem a busca incansável de Hipátia por um modelo teórico que explicasse a trajetória dos errantes no céu: “Me conte seus segredos […]”; “[…] voltar ao começo […] correndo em círculos […]”; “Ninguém disse que seria fácil”; “Mas também ninguém nunca disse que seria tão difícil”; “Eu só estava analisando números e figuras” “Desfazendo os enigmas”.
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